Por que os sindicatos devem existir na atualidade? Qual é o papel deles? Os sindicatos ainda possuem alguma utilidade no mundo do trabalho precário e flexível? O programa do golpe neoliberal em curso no Brasil responde a essas perguntas de forma contundente nas mudanças recentes que aprovou na legislação trabalhista. A recém aprovada (contra)reforma trabalhista no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Michel Temer define um ataque mortal ao movimento sindical brasileiro. As mudanças promovidas na Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT – foram avassaladoras na perspectiva de desmontar uma das principais trincheiras de lutas da classe trabalhadora no país.

A questão central das mudanças aprovadas é redefinir a natureza e a amplitude da capacidade de representação das organizações sindicais no mundo do trabalho e na sociedade de uma forma geral. Nesse sentido, é possível destacar três eixos básicos que definem o sentido profundo das mudanças.

O primeiro é o da precarização e fragmentação dos contratos de trabalho, ou seja, ao ampliar e formalizar o “cardápio” que o capital (patrões) possui para realizar as contratações nas empresas, tais como terceirização, teletrabalho, trabalho intermitente e contratos temporários, as categorias profissionais como bancários, comerciários ou professores são diluídas nesse turbilhão de flexibilidade precária. Ocorre uma alienação do sentido essencial do trabalho na sociedade, os trabalhadores são desenraizados da sua profissão, do seu local de trabalho e consequentemente da sua capacidade de organização representativa nos sindicatos.

O segundo é a fragilização da organização por local de trabalho e da organização das lutas coletivas.Fica definida a organização de comissões por empresa, sem a participação dos sindicatos na sua organização e composição, que podem conduzir à construção de acordos coletivos onde, em muitas questões, o negociado prevalece sobre o legislado. Existe ainda a previsão de situações de acordos individuais com alguns segmentos de trabalhadores.

A definição dos acordos individuais e das comissões por empresa com a prevalência do negociado sobre o legislado é um ataque frontal à capacidade de coesão e unidade nas lutas coletivas dos trabalhadores, seja em questões imediatas de sua realidade nos diferentes locais de trabalho, ou nas lutas políticas mais amplas por direitos.

A organização dos trabalhadores por local de trabalho através do seu sindicato representativo é um princípio histórico defendido pelo sindicalismo combativo inaugurado pela Central Única dos Trabalhadores no fim dos anos 1970. A forma como a mudança foi proposta corrompe a organização ao fragmentar a capacidade de organização a partir de uma base coletiva.

O terceiro é o ataque estrutural à capacidade de financiamento sindical.A redução drástica e estrutural do financiamento da organização, ações e lutas sindicais, com destaque para as campanhas salariais, greves e manifestações de massa por direitos, pode ser compreendida como uma síntese das mudanças aprovadas. A precarização dos contratos de trabalho e a forte redução na capacidade negocial dos sindicatos produzirá efeitos avassaladores nas taxas de sindicalização. Outra mudança importante é individualização da exigência de adesão de cada trabalhador às deliberações coletivas de contribuição aprovadas em assembleia da sua categoria. Em suma, os três eixos de mudanças focam no evidente esvaziamento da representatividade e combatividade sindical no país. As mudanças visam ampliar as garantias e autonomia do capital (empresas) nas relações de trabalho.

O debate sobre a natureza e o sentido ético e histórico dos sindicatos no mundo contemporâneo é central na construção das estratégias de lutas e resistência da classe trabalhadora latino-americana no século XXI. No mês de junho, o Papa Bergoglio teve uma audiência com a Confederação Italiana dos Sindicatos dos Trabalhadores (CISL). No encontro, o pontífice destacou a relevância de um debate sobre a necessidade de um novo “Pacto Social pelo Trabalho”, onde exista uma integração necessária entre o trabalho e a pessoa, num verdadeiro processo de humanização inerente ao tecido social.

O Papa defendeu no encontro que os sindicatos têm dois “desafios epocais”: o profético e o da inovação. O primeiro desafio define a própria natureza dos sindicatos, ao dar voz a quem não tem, denunciar os desmandos dos poderosos e a retirada de direitos do povo.

O sindicato, enfatiza Francisco, “nasce e renasce todas as vezes que, como os profetas bíblicos, dá voz a quem não a tem”, todas as vezes que “denuncia o pobre ‘vendido por um par de sandálias’”, que “desmascara os poderosos que pisoteiam os direitos dos trabalhadores mais frágeis”, que “defende a causa do estrangeiro, dos últimos, dos ‘descartados’”.

“O sindicato é a expressão do perfil profético da sociedade.”

As mudanças na legislação trabalhista visam fragilizar profundamente essa “natureza profética” ao maximizar a capacidade das empresas de submeter os trabalhadores às demandas da extração da mais valia. O trabalhador é cada vez mais individualizado, fragmentado e precarizado no mundo do trabalho, isso considerando uma realidade de intensa concentração da renda, elevada taxa de desemprego, salários achatados e alta taxa de informalidade nas relações de trabalho.

O desafio da inovação define exatamente a necessidade dos sindicatos de ampliar seu horizonte de atuação, fortalecendo sua capacidade inclusiva na organização de suas lutas, resistências e denúncias de injustiças.

É preciso olhar para além dos muros das “cidades do trabalho”, aqueles que estão incluídos no mundo do trabalho, olhar para aqueles que são vítimas de múltiplas exclusões, seja por escolaridade, gênero, etnia ou pela condição de imigrante, dentre outras que promovem um brutal mal-estar coletivo que define uma verdadeira falência social.

De fato, o sindicato “não desempenha a sua função essencial de inovação social se vigia apenas aqueles que estão dentro, se protege somente os direitos de quem já trabalha ou está aposentado. Isso deve ser feito, mas é metade do trabalho de vocês”, explica Bergoglio. “A vocação de vocês também é proteger quem ainda não tem os direitos, os excluídos do trabalho que são excluídos também dos direitos e da democracia.”

É preciso fortalecer o caráter popular da organização sindical, garantir sua contínua reinvenção, mobilizando e organizando a maioria do nosso povo. Ser a voz daqueles que estão margeados pelos direitos e pela democracia. Os sindicatos em sua natureza profética são essenciais para a construção de uma sociedade boa, justa e equilibrada social e economicamente. As organizações sindicais devem fortalecer sua capacidade de inovação sob pena de ficarem limitadas pela própria lógica excludente do capital que descarta milhões de seres humanos em prol da artificialidade de sua reprodução.

 

(*) Helder Nogueira é doutor em Ciências Sociais, mestre em Ética e Filosofia Política e professor titular da rede pública de educação do Ceará. É ainda membro da Direção Nacional da CUT e do Conselho Nacional de Entidades da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).